Agricultores familiares e produtores rurais de São João da Baliza, Caroebe e São Luiz, todos na Região Sul, denunciaram o risco de perderem as terras onde vivem há mais de 20 anos. As declarações foram dadas durante audiência pública “Política Fundiária e Regularização Rural no Estado de Roraima” promovida pela Assembleia Legislativa (ALE-RR) em Caroebe, na tarde desta quinta-feira (9). O evento foi organizado para discutir as mudanças na política fundiária propostas pelo governo do Estado.
Assista à audiência pública
O projeto foi encaminhado para o Poder Legislativo em janeiro deste ano pelo governador Antonio Denarium (Progressistas), que pediu regime de urgência. Contudo, os parlamentares avaliaram que a proposta era complexa e precisava de uma ampla discussão com a sociedade. Em abril, ele ainda tentou retirar a proposta de tramitação, mas o presidente da Assembleia, deputado Soldado Sampaio (Republicanos), rejeitou.
Estavam na audiência o chefe do Legislativo e os deputados Armando Neto (PL), Coronel Chagas (PRTB), Dr. Claudio Cirurgião (União), Eder Lourinho (PSD), Gabriel Picanço (Republicanos), Idazio da Perfil (MDB), Isamar Júnior (Podemos) e Jorge Everton (União). Também participaram o prefeito de Caroebe, Osmar Filho (Republicanos), o superintendente regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Evangelista Siqueira, e a presidente do Instituto de Terras e Colonização de Roraima (Iteraima), Dilma Lindalva Costa.
Sampaio garantiu que todas as denúncias e demandas apresentadas na audiência farão parte do relatório da comissão especial que cuida do projeto de lei do Executivo, e que é preciso ter respeito por aqueles que construíram o Estado de Roraima. O presidente do Legislativo declarou ainda que diversas reclamações já chegaram até a Casa e devem ser apuradas pelo Iteraima.
“Nos deparamos com essas denúncias e preocupações, em relação às glebas, que chegaram até nós sobre grilagem de terra. O pequeno, que vive na propriedade há anos, foi surpreendido com sobreposição de terras. De uma hora para outra, começam a aparecer pessoas que são donas dessas terras e nunca foram vistas nesses processos. Não podemos compartilhar nem permitir qualquer retrocesso nessa conquista que é nossa”, expressou.
Sampaio reforçou que é dever da Assembleia Legislativa fiscalizar e acompanhar qualquer irregularidade e solicitou que o Instituto de Terras de Roraima apure, in loco, as denúncias feitas pelos produtores. “Não aceitamos desvios de conduta do Iteraima ou de qualquer outro órgão que venha a ferir o direito às terras. Quero garantir que, no que depender da Assembleia, não vamos permitir que haja risco a esse direito”, disse, ao acrescentar que o Iteraima tem dinheiro, já que o governador pediu remanejamento de R$ 38 milhões do órgão para a Secretaria de Infraestrutura.
Demandas da população
Dezenas de produtores rurais e agricultores familiares falaram durante a audiência pública. Eles explicaram que há mais de duas décadas, sem ajuda ou suporte financeiro de qualquer instituição pública, criaram estradas e estruturaram as propriedades. Contudo, quando a Gleba Baliza passou da União para o Estado, o Iteraima alegou sobreposição de terras e negou o título definitivo para alguns produtores. Com isso, gerou-se insegurança fundiária para as cerca de 150 famílias que vivem na região.
“Esses produtores estão aqui lutando para organizar suas terras e produzir. E agora, uma medida descabida, da qual não sabemos o fundamento nem o porquê, está retirando dezenas de famílias e as jogando na rua. Não é desapropriação, é simplesmente tomar a terra das pessoas. Isso é um absurdo! Por que precisam de diversos documentos, se estamos produzindo lá há tempos? Querem priorizar os amigos do governador [Antonio Denarium]”, disse o representante da Associação dos Produtores Rurais do Sudeste de Roraima, Eurides Campos Antunes.
Produtores como Rogério da Silva, que vivia na propriedade há 20 anos, perdeu os cerca de 1,5 mil hectares. A celeridade que ele esperava do governo estadual não veio. No lugar, o sonho de continuar na terra onde construiu uma vida foi substituído por uma enorme dor de cabeça. O produtor, que afirma ter toda a documentação comprovando ser dono legítimo da propriedade, espera poder reaver o local.
“Me chamaram de novato. O que é meu, é meu, o que é do meu vizinho, é do meu vizinho. As terras são de quem chega com dinheiro de fora, sem nunca ter pisado na terra, e começa a explorar madeira. Nessa audiência pública, graças a vocês, nossa voz pode ser ouvida. Vocês foram eleitos e representam o povo. Não sou letrado, sou humilde, mas preciso mostrar a nossa realidade para vocês. Tenho documentos atestando que a posse de quem está na terra é ilegal. Tive um bom advogado, mas perdi”, enfatizou Rogério.
Advogada e filha de produtores rurais, Aline Zago declarou que há situações de grilagem de terras na região e reforçou que o contexto é delicado, com graves entraves nas instituições públicas. Ela disse que atua em casos de regularização fundiária, mas viu o cliente ter o processo cancelado após ser constatada que a gleba não estava totalmente regularizada e com matrícula.
“Oficiei o Iteraima para que soubéssemos o atual status de todas as glebas, porque algumas delas foram transferidas, mas não foram georreferenciadas, e outras não têm matrículas nem estão aptas à titulação. No caso do meu cliente, o processo foi instruído, com relatórios, vistorias, ocupação, mas chegou à sala de títulos e identificaram que a gleba não podia ser titulada. Retrocedeu o processo para retificar o parecer técnico, para que saísse uma autorização de ocupação. Resultado: não vai ter o título”, declarou.
Reginaldo Alencar frisou que a afirmação do Iteraima de sobreposição de terras nunca foi informada oficialmente pelo órgão. As famílias souberam por meio de um produtor que, acompanhando o processo no instituto, descobriu o entrave no início deste ano. Ele mencionou ainda que presenciou pessoalmente que as propriedades que estão dentro da área de interesse do Estado não serão repassadas para os atuais donos.
“Não havia nada. De repente, em outubro do mesmo ano, naquelas áreas que outrora não tinha nada, segundo o Iteraima, passou a constar uma sobreposição. Tivemos muita dificuldade em saber sobre isso, algo que persiste até hoje sobre essa área de interesse. O que concluímos é que existe apenas um arquivo no Iteraima e os processos são automaticamente paralisados se estiverem dentro desse arquivo. Não ouvi de terceiros. Eu presenciei. Deu sobreposição, não anda mais o processo”, revelou.
Ábner Mariano aproveitou a oportunidade para entregar ao presidente do Legislativo, Soldado Sampaio, um convite para que realize outra audiência pública na Vila Equador, em Rorainópolis, onde, segundo ele, há casos de empresários invadindo as propriedades de agricultores. Ele ainda reforçou a necessidade de deputados e autoridades políticas participarem do Fórum da Agricultura Familiar, na mesma cidade, em junho.
“Queremos a regularização das terras sem mentira, mas de verdade, não é dizer ‘está aqui, a terra é minha’, e vem uma pessoa com a aeronave requerer a terra do Incra e do Iteraima, porque tem dinheiro, e nós não ficamos nas terras porque somos fracos. O Sul do Estado tem o segundo maior assentamento do Brasil e estamos perdendo nossas terras para os empresários que vêm de longe. Queremos a regularização fundiária com nossas terras documentadas e essa audiência pública é o primeiro passo”, expressou.
Ainda na audiência, os agricultores pediram a redução da taxa de reposição florestal, conforme eles, no valor de R$ 56. Eles alegaram que nos outros estados brasileiros, a mesma taxa varia de R$ 10 a R$ 15. O alto valor inviabiliza a plantação e cultivo nas propriedades.
Desentendimento
A presidente do Iteraima, Dilma Lindalva Costa, alegou estar com o “coração doído” pelo que escutou na audiência e afirmou haver uma enorme desinformação sobre a Gleba Baliza. De acordo com ela, atualmente, existem 170 processos referentes à área mencionada. “Não existe produtor sendo retirado de sua terra, o que existe é uma preocupação para resolver os problemas das famílias que lá estão”, resumiu, garantindo que ninguém será retirado da propriedade, desde que cumpra o requisito da lei.
Dilma explicou que, ao ser transferida, a gleba, por cálculos da União, tinha 760 mil hectares. No entanto, após o georreferenciamento do Iteraima, constatou-se que eram 904 mil hectares. Mesmo assim, conforme a presidente do órgão, o Estado só tem direito apenas a 414 mil hectares depois de um novo processo de georreferenciamento, destacamento e matrícula da gleba por causa de projetos de assentamento e áreas indígenas. Em razão disso, não pode regularizar as terras dos agricultores e produtores rurais até que termine toda a regulamentação da gleba.
“As pessoas questionam por que não regulariza. Porque não se pode regularizar sem regularizar a gleba. É preciso ir até o local, colocar os marcos para delimitar a área e que haja segurança para as pessoas. Delimitando e excluindo da gleba, vão sobrar para o Estado 414 mil hectares, e isso numa perspectiva, porque, quando for feito o destaque, pode haver alteração para mais ou para menos. Depois disso tudo, o Estado vai até o cartório, retifica a matrícula, para poder regularizar os agricultores”, detalhou.
Dilma voltou a falar que o governo de Roraima não quer prejudicar a nenhum agricultor. “Falamos com toda a tranquilidade: estamos trabalhando, não estamos de braços cruzados, sabemos da angústia de vocês. Acreditem: essa audiência veio para esclarecer a situação da Gleba Baliza. Todos que estão lá trabalhando, no momento em que for apurada a quantidade e feito o processo em cartório, o Estado vai fazer a parte dos agricultores”, ponderou.
Por outro lado, o Incra contesta a declaração da presidente e afirma que todo o processo que o Iteraima afirma ser necessário já foi feito durante a transferência da Gleba Baliza para o Estado de Roraima. O superintendente do Incra em Roraima, Evangelista Siqueira, ressaltou que os atos do Incra anteriores à transferência das terras precisam ser convalidados pelo órgão estadual.
“Entendam que nós, em nível de atuação, já não podemos resolver, uma vez que a gleba foi transferida para o Estado. Além de convalidar o que foi feito pelo Incra, os processos devem ser priorizados pelo Estado para que recebam os títulos”, acrescentou.
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