A Terra Indígena (TI) Guyraroká voltou a ser alvo do despejo de agrotóxicos. No início desta semana, os Guarani Kaiowá registraram o momento em que um avião sobrevoa a comunidade para pulverizar o veneno na lavoura de soja sobreposta à TI. A chuva tóxica caiu sobre moradias, escola e área de circulação dos indígenas no tekoha.
“Chamam a gente aqui de (capim-)amargoso, resistente ao veneno, que só se arranca com a enxada. Começou ontem o despejo (terça-feira, 29), às 15 horas, e continuou hoje (quarta-feira, 30), às 10 horas. O cheiro é insuportável, um horror. Infelizmente isso se normalizou só que diferente do amargoso, somos seres humanos”, diz Erileide Guarani Kaiowá.
A aldeia encontra-se, literalmente, cercada pela produção de commodities do agronegócio, que conta com a Fazenda Remanso, de soja e milho, e de usinas de cana, caso da Raízen e Nova América. Tanto aviões quanto tratores despejam agrotóxicos em monocultivos que ficam a poucos metros de áreas habitadas pelos Guarani Kaiowá.
Os ataques químicos passaram a ser recorrentes. Em uma madrugada de janeiro deste ano, “era umas quatro horas da manhã quando o avião começou a passar o veneno. Ele foi parar por volta de umas 9h, 9h40 por aí. Agora eles estão passando o ressecante tanto com trator como com avião. De ontem para hoje, uma criança passou mal”.
Atualmente, o Brasil é o maior usuário de agrotóxicos do mundo, embora não seja o campeão mundial de produção agrícola, sendo, ainda, o principal destino de agrotóxicos barrados no exterior
O relato é também de Erileide Guarani Kaiowá, que nas Nações Unidas, em Genebra, na Suíça, em 2022, denunciou o que a Aty Guasu, a Grande Assembleia Guarani Kaiowá, considera como ataque químico. “Além dos assassinatos, tem dois outros jeitos que encontraram para matar: despejando veneno e atropelando nas estradas”, explica Eliseu Guarani Kaiowá.
Em maio de 2019, quatro crianças e dois adolescentes precisaram de atendimento médico após intoxicação provocada pelo contato com calcário e agrotóxicos utilizados em área da Fazenda Remanso, localizada a 50 metros da escola indígena. As crianças tinham um e dois anos; os adolescentes, 17 e 18 anos. Na ocasião, a comunidade também gravou imagens. Atualmente, o Brasil é o maior usuário de agrotóxicos do mundo, embora não seja o campeão mundial de produção agrícola, sendo, ainda, o principal destino de agrotóxicos barrados no exterior.
Conforme Relatório de Comercialização de Ingredientes Ativos de Agrotóxicos do Ibama 2022, as vendas dos produtos classificados como “Químicos e Bioquímicos” foram de 800.652 toneladas de ingredientes ativos, o que representa um aumento de aproximadamente 11% em relação ao ano anterior (2021), cujas vendas foram de 720.870 toneladas. No entanto, as vendas totais dos produtos vêm aumentando a cada ano, como se pode constatar no Relatório Comercialização de Agrotóxicos – 2009 a 2022, disponível no site do IBAMA.
Marco temporal e a suspensão da demarcação
A vida de mais de 90 indígenas nesta área da TI segue sob risco ano após ano, com o grupo encurralado em uma área de pouco mais de 50 hectares. Declarada em 2009 pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, esta etapa do procedimento administrativo dos 11 mil hectares foi anulada pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2014, com base na tese do marco temporal, e sem a participação da comunidade no processo.
Em 2018, os indígenas de Guyraroká entraram com uma ação rescisória da sentença que lhes negou o pertencimento da terra. Em 2021, a Suprema Corte admitiu por unanimidade a ação, que ainda não foi julgada. Enquanto isso, a comunidade não tem recebido a devida assistência e proteção das autoridades públicas para impedir os ataques químicos mesmo com ação em curso na Justiça Federal.
O Ministério Público Federal (MPF) em Dourados, após as denúncias realizadas pelos Guarani Kaiowá e o Cimi, acionou a Justiça Federal, por meio de ação civil pública, com o objetivo de conter o despejo desenfreado de agrotóxicos na região de Caarapó.
O único dispositivo de validade nacional que aborda um limite fixo entre propriedades adjacentes para o uso de agrotóxicos não engloba os equipamentos de aplicação terrestre mecanicamente tracionados
Segundo comunicado da Procuradoria, conforme matéria do Campo Grande News, a ação pedia que a Justiça determinasse à União, ao estado de Mato Grosso do Sul e ao município de Caarapó o estabelecimento de parâmetros objetivos para a aplicação terrestre de agrotóxicos, com distância mínima entre propriedades. Até agora, nada foi feito.
Desde então, a única regulamentação federal que versa sobre a distância mínima entre áreas limítrofes para aspersão de agrotóxicos é a Instrução Normativa nº 02, de 03 de janeiro de 2008, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, que disciplina sobre as normas de trabalho da aviação agrícola e a aplicação aérea de fertilizantes.
“Ou seja, o único dispositivo de validade nacional que aborda um limite fixo entre propriedades adjacentes para o uso de agrotóxicos não engloba os equipamentos de aplicação terrestre mecanicamente tracionados”, argumentou o MPF à Justiça Federal.
Nota técnica: ilicitude da falta de regulamentação
A subprocuradora-Geral da República e coordenadora da 4ª Câmara de Conciliação e Revisão (CCR) do MPF, Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, elaborou, na metade deste ano, a ‘Nota Técnica sobre a ilicitude da falta de regulamentação da pulverização terrestre de agrotóxicos’, resultado do Grupo de Trabalho Agroecologia do MPF.
Conforme a subprocuradora-Geral, a pertinência temática se deu em consideração ao Fórum Nacional de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e Transgênicos, que ocorreu entre os dias 26 e 27 de agosto, em Manaus (AM). Ocorre que a nota técnica se aplica inteiramente à situação vivida pelos Guarani Kaiowá da TI Guyraroká.
A nota cita o relatório da Relatora Especial sobre o direito à alimentação, Hilal Elver, preparado com o apoio do Relator especial sobre direitos humanos e substâncias e resíduos perigosos, Baskut Tuncak, em que está demonstrado os efeitos dos agrotóxicos sobre comunidades que vivem perto de terras agrícolas, povos indígenas, mulheres e crianças. O relatório foi apresentado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU em março de 2017.
Para o Grupo de Trabalho, é possível do Estado brasileiro intervir na questão antes mesmo de se encontrar uma regulamentação
Conforme conclui o Grupo de Trabalho do MPF, “já que a República Federativa do Brasil é signatária da Convenção Americana de Direitos Humanos e está submetida à jurisdição da Corte IDH, é possível a responsabilização internacional caso haja violação ao meio ambiente saudável e equilibrado, o que torna necessária uma regulamentação séria sobre o tema em questão, por meio do constante diálogo com a sociedade”.
Países como Argentina e Peru sofreram condenações internacionais pelo mesmo motivo. No Brasil, hoje, apenas os estados de Goiás e do Paraná possuem algum ordenamento a respeito do assunto. Ocorre que para o Grupo de Trabalho, é possível do Estado brasileiro intervir na questão antes mesmo de se encontrar uma regulamentação.
“O princípio da efetividade das normas constitucionais (ou da máxima efetividade) impõe essa regulamentação para a tutela de direitos constitucionalmente protegidos que estão sendo diuturnamente violados. Em voto proferido em recente julgamento no STF (ADPF 760/DF e ADO54/DF), acórdão ainda não publicado, a ministra Carmen Lúcia defende a obrigação estatal de intervir, seja na via administrativa, seja na via legislativa, para assegurar a manutenção dos processos ecológicos essenciais”, diz trecho da nota técnica.
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