Acompanhar os migrantes é prioridade, não a única, mas uma das mais importantes, na diocese de Roraima. As Pastorais Sociais da diocese, que tem sua sede na Casa da Caridade Papa Francisco, se empenham de diversos modos em seu acompanhamento, mesmo diante da escassez de recursos e de pessoas para levar em frente essa missão. Muitas mãos que se juntam para construir um futuro melhor, para gerar vida, para tantas pessoas vulneráveis, buscando apaziguar seu sofrimento. Nesse sentido, são muitos os projetos sociais que mostram o rosto samaritano da Igreja de Roraima, até o ponto de o bispo afirmar que “Nossa Igreja não seria tão rica se não tivesse ficado do lado dos indígenas e do lado dos migrantes”.
Em coletiva de imprensa foi dado a conhecer aos meios de comunicação locais o trabalho da Comissão Episcopal Especial de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que está em missão na diocese de Roraima de 17 a 23 de junho, com visitas na Guiana e na Venezuela. Uma comissão que segundo lembrou seu presidente, o bispo da diocese de Tubarão (SC), dom Adilson Pedro Busin, faz parte da Comissão para a Ação Sociotransformadora da CNBB e que, na estrutura da Cúria Vaticana, estaria dentro do guarda-chuva do Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral.
O bispo ressaltou que a CNBB se preocupa sempre com a dimensão social, lembrando que a comissão, criada em 2016, formada por bispos, religiosos, religiosas, leigos e leigas, é um dos frutos da Campanha da Fraternidade de 2014, que teve como tema “Fraternidade e Tráfico Humano”. Dom Adilson Busin lembrou as palavras do Papa Francisco, que define o tráfico de pessoas como “uma chaga aberta que envergonha a humanidade”. A comissão já fez uma visita em Roraima em 2018, um estado com grande imigração fronteiriça.
O bispo lembrou que o tráfico humano faz parte da migração de forma velada e silenciada. Daí a importância de pisar o chão, escutar as pessoas, ver, para poder levar adiante a missão de vigiar e dar resposta como Igreja a essa problemática. Ele insistiu na importância de cutucar, de recordar à sociedade a realidade do tráfico de pessoas. Para isso, a comissão existe para ajudar a esclarecer, a manter as antenas atentas, para escutar as vítimas e descobrir em seus rostos o rosto do Senhor.
O bispo local, que também é membro da comissão, dom Evaristo Spengler, lembrou sua missão episcopal na Prelazia do Marajó (PA), uma região que desperta muita atenção da mídia com relação ao tráfico de pessoas, exploração sexual, trabalho escravo, afirmando com toda certeza que o que existe em Roraima é bem maior do que no Marajó. Numa região onde as fronteiras têm pouco controle migratório, o que possibilita o tráfico de pessoas, inclusive crianças, também de mercúrio para o garimpo ilegal. Diante disso o bispo denuncia a falta de atuação do poder público, diante de episódios de contrabando de todo tipo, de episódios de aliciamento, de exploração, de coiotes que se aproveitam da falta de conhecimento das pessoas.
Na realidade interna de Roraima, o bispo falou sobre o garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami, que acaba com a natureza, polui os rios, e apesar da Operação Desintrusão, a força do narco garimpo, financiado nacional e internacionalmente, onde existe tráfico de armas, de drogas, exploração sexual das indígenas, lembrando as palavras de Davi Kopenawa: “o branco vai lá, usa as nossas mulheres, as nossas meninas, como se fosse um prato descartável que jogam fora”, algo que define como realidades muito duras. Diante disso dom Evaristo Spengler denuncia: “O estado não tem assumido ainda o seu papel no enfrentamento ao tráfico de pessoas”.
Nessa perspectiva, a missão da comissão é ajudar a fazer um diagnóstico profundo e descobrir caminhos como Igreja, trabalhando em rede com a sociedade, e cobrar do poder público a sua ação. Isso porque o poder público está deixando a ação na mão da sociedade, das organizações humanitárias.
O aumento do tráfico humano na região de fronteira está relacionado ao aumento das migrações, é algo que aparece nas pesquisas realizadas pela Universidade Federal de Roraima. A professora dessa instituição, Márcia Maria de Oliveira, destacou que “o migrante é alvo especial da exploração das rotas do tráfico” falando sobre a existência de empresas especializadas no tráfico, no traslado com transportes clandestinos, que tem aumentado nos dois últimos anos em Roraima.
Esses migrantes são depois são destinados a trabalhos sem contrato, não pago, análogo à escravidão, em madeireiras, nos garimpos, em grandes fazendas. As mulheres são as vítimas principais, com aumento do abuso sexual de crianças, segundo a socióloga, que ressaltou que na região o tráfico de pessoas está estreitamente vinculado ao garimpo, que por sua vez está controlado pelo narcotráfico, falando do crescimento dos chamados “prostibares”. Existe um vínculo entre trabalho escravo, sendo os homens as vítimas principais, a exploração sexual, no caso das mulheres, e a exploração de crianças para cavar pequenos túneis nos garimpos.
A comissão, segundo sua secretária executiva, Alessandra Miranda, trabalha na metodologia de atuação e formação junto aos regionais da CNBB e as pastorais sociais. Para isso são elaborados materiais, que seguem o método ver, julgar, agir, ajudando no conhecimento dos protocolos internacionais, e no conhecimento das diversas modalidades do tráfico de pessoas.
Um dos problemas do Estado de Roraima, segundo o bispo local é a falta de interesse do poder público com relação ao tráfico de pessoas. Um exemplo disso foi a audiência pública na Assembleia Legislativa de Roraima em julho de 2023 sobre tráfico de pessoas, onde nenhum deputado participou, mesmo tendo sido todos convidados. Diante disso, dom Evaristo Spengler disse que “se naturalizou, aqui no estado, crimes que são bárbaros: a destruição da natureza, a venda de pessoas, a exploração sexual, parece que estão naturalizados”, denunciando a dificuldade de envolver o poder público do estado nessas causas.
O bispo de Roraima fez um chamado à sociedade roraimense a pensar em quem vota. Ele lembrou que o Papa Francisco tem dito que não podemos transformar o ser humano em mercadoria, comparando a realidade atual dos migrantes com a vivida pelos escravos trazidos da África séculos atrás. São causas a ser enfrentadas na sociedade roraimense e na Igreja, enfatizou dom Evaristo Spengler. Para isso a Igreja de Roraima está estreitando laços com as Igrejas da fronteira, a diocese de Guiana e o Vicariato de Caroní, um caminho comum que esta missão ajudar a avançar.
Se faz necessário de “desnaturalizar uma economia da morte, que foi estabelecida neste estado de Roraima”, enfatizou Márcia de Oliveira. Uma realidade vinculada com o garimpo, com inúmeros casos documentados de tráfico de pessoas, onde acontecem estupro, inclusive estupros coletivos e exploração de crianças. Nessa perspectiva, o relatório sobre a missão, que vai ser elaborado pela comissão, quer elaborar recomendações para o poder público em vista de uma melhor atuação na prevenção do tráfico de pessoas.
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